No veleiro
É domingo, o vento é silencioso.Vem de frente.
O ar úmido da represa de águas limpas de Avaré
Mantendo 210 graus na magnética.
Pelo canal principal, quase um mar, o céu azul salpica em stratus.
A bordo do Easy, um velho amigo de muitas histórias.
Quantas temporadas temos ambos no flutuar da vida.
Na vida é preciso tempo para refletir como fazem estas águas com os céus.
Este enorme rio convida a abrir a alma e decolar para a vida.
Romper o isolamento da pequena tempera, das coisas medianas.
Do risco de se chegar ao pé montanha e não escalá-la.
Assim segue a vida e esse rio, à medida que caminha, se limpam.
Oxida crenças, deposita no fundo o que é pesado.
Só o que se faz leve pode avançar na vida.
Ultrapassando as aparências, na firmeza de abandonar o que não serve mais.
No momento certo de abraçar o que silencia e solta ao vento.
Chego ao meu limite nessa manhã que não permite senão o verdadeiro.
Não basta calar diante do aceitável mas vencer o conforto do que se repete.
Sentir a alma humana querendo levantar-se saindo de si.
O vento parou. Agora sem velas, o jeito é acionar o motor.
O botinho inflável vem atrás se arrastando e batendo nas ondas.
Novo rumo 240, destino o Costão de mata virgem.
Lá se é transportado para Ubatuba exceto pelo canto dos pássaros.
Cenário para um passeio lento, não querendo nada, não precisando.
Apenas dividindo este momento mágico com todos que amo.
Aqui o rio se parece com o mar na praia do Flamengo.
O Flamengo é uma espécie de pátria para os velejadores.
O prêmio merecido pelas horas de equilíbrio nos ventos.
Água que refresca a pele queimada, docemente salgada.
O canto dos pássaros esclarece o quão pouco precisamos para viver.
Mesmo sozinho é possível sentir a presença dos seres queridos.
É bom chegar a essa enseada abrigada onde tantas vezes nos sentíamos em casa.
Ancorar ? Jogar a ancora ou não ?
Deixo-me aproximar mais das árvores tão verdes destas margens.
Como é lindo esse lugar, é preservado por desconhecimento.
Todo santo dia essa maravilha está aqui inteiramente disponível.
Enquanto isso os nossos dias são marcados pela sede.
Este é o perigo que ronda. Uma vida secante, sem conhecer seu valor.
Aqui está bom para jogar ancora. Barco parado e pronto.
Ocasião para dar de presente um mergulho.
Mergulho nu e quente vestido apenas destas águas.
Bóio com os pés apoiados no último degrau da escada de popa.
Sinto-me dissolver como um efervescente anti-ácido numa vida enjoativa.
Esta vida ácida que priva a tantos esse encontro.
Braços abertos e mínima respiração. Nesse flutuar no universo.
Sem pensamentos, apenas boiar, sem se afogar.
Sinto-me conectado por um ponto, a todo universo.
Onde se reconhece que as palavras são inúteis.
Mesmo se soubesse falar com deus.
Vida que se sente unida à imensa vida.
É como se o corpo fosse apenas água e essas lindas árvores.
Retorno a bordo.
Deito-me por alguns minutos ao sol de bombordo para secar o corpo.
Sinto-me tão vestido de carne da cabeça aos pés.
Vestido de idéias, de imagens, de história.
Vestido de matéria dura que pode até asfixiar a verdadeira respiração.
Somos sopro e sendo assim, não podemos ficar presos.
Como o cavaleiro fica preso à sua montaria, e a sua batalha.
O veleiro ancorado sempre aponta para o vento.
Como a mostrar a necessidade de soltar-se.
E abrir próprias velas.
Deixar o ser levado pelo vento nessa existência.
Deixar-se levar sem resistências para o que atrai.
Sem esforço em entender, se desprender.
Perceber que só no pouco é que se consegue tocar o muito.
Que no fundo da solidão há uma passagem para seu avesso.
Que idéias podem nos levar ao nada, mas só o nada pode nos levar.
O céu é incorruptivelmente azul. O sol a pino, tudo em volta é luz.
Um minuto parece uma hora e só é percebido pela queimação na pele.
Para essas horas de iluminação é bom usar um protetor solar.
Hora de recolher a ancora para nova partida, desta vez no motor.
O hotel aqui perto na proa 160 graus.
Para um ótimo almoço vegetariano.
Nesta hora as nuvens nos céus, são pesados stratus avolumados.
Que descem para a camada mais densa e de maior pressão.
Se horizontalizam como senhoras gordas sentadas para conversar.
A boreste se vê a ponte. Linda centopéia se esticando contra os lados da represa.
Nela os veículos são como seiva numa alongada espinha o que a faz um ser vivo.
Enquanto se reflete tranqüila em azuladas águas brilhantes e macias.
Proa ao vento e a meta é achar um bom lugar para fundear.
Nuvens repentinas carregadas à sudeste recomendam uma prudente brevidade.
Quem sabe ancora de proa...
Aproximação lenta como um pouso no aeroporto de origem.
Fechar a gaiuta, pegar o botinho e ir para o hotel.
Para o almoço água com gás e limão.
Um barco é apenas um pontinho flutuando na indivisível inteireza.
A sensação de paz que pode existir quando se está em ordem.
Deixando o fluxo da vida refletir no íntimo A luz dos céus.
No encontro das águas do rio.
Com as nossas próprias águas.
Que só o veleiro propicia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário