sábado, 15 de outubro de 2011

Basta uma chance
A paz tomar conta
Traz o entendimento
Daquilo que é lhe próprio
E não tem preço
Ao se recusar ao amor pequeno
Desvia-se da felicidade pequena
E se recebe o todo
Como presente
Que chega em ondas
E se é conhecido na proporção
Em que se abre para ele

A vida é um dom valioso demais
Para ser vivido senão
Em jóias de dias
Aprendo que perdoar
Arranca pedaço
Que é preciso encarar a vida
Como artista mesmo
Que só assim
Os céus conspiram
Na medida que você
Se descomplica

Aprendo a confiar mais
E me desacelerar
Dando mais tempo para o outro
Aprendo a sentir-me aqui dentro
A qualquer coisa que faça
Descubro que preciso de muito tempo para mim
Sem nada programado
Em contra partida
Que preciso de pouco espaço
Pouco dinheiro
E que o essencial se ajunta

O novo
É o que brota
Do olhar que se vê
O que está do lado de lá
Se mostrando íntegro
Faz brilhar
O que está aqui e vice versa
E a luz de um
Acende a luz do outro
Luz ao quadrado
É só multiplicar pela matéria
Que dá energia
Então as outras partes se acendem
Por proximidade e vibração
Dando luz ao contínuo estado
De renascer

Aprendo a olhar
E assim desconsiderar
O desconforto da imagem
Aprendo a descontar
O que chama a atenção
O verniz da sedução
Ver além
Das dimensões acumuladas
A realidade sem formas
Então pessoas feias
Passam a ser lindamente reveladas
Enquanto beldades
Mergulham na falta de luz própria
O belo é o que não está
Relacionado com nenhuma medida


Talvez renove o contrato
E fique mais uma temporada
Nesse minúsculo apartamento
Enquanto o horizonte não clareia
Apenas as manhãs
Não quero renovar a dor
Que encontra motivos de sombra
Não quero emendar
Mas desconfio que num contrato
Já não está o outro
Em epígrafe

Amanheço a rosa pálida
Que sobrou no jardim
Depois do vendaval
De mim se arrancaram os botões
Das fendas a seiva amarga
O gosto de vidro da separação
Ter sobrevivido é irrelevante
Duradoura crueldade
Dor aguda
Nada do que passou
Restou em mim
Exceto em sensação de mosaicos.

Amanheci poeta
Sem rimas do passado
Amanheci profeta
Nas ondas do do que virá
Amanheci duro
Descobri na bruma macia
O prenuncio do veio de ouro
Que escorre pra dentro
Onde se pode estar em casa
Mesmo onde não há paredes

Amanhece lentamente
O sol se recusa aparecer
Por trás da grossa camada de edredom
A fria atmosfera
Envolve a alma
Parece feriado
O céu é cinza
Como cinzas há por toda parte

Amanhece outro dia
O jato de luz invade o closet
Ilumina roupas coloridas
Tanto quanto descolorida
Como foi essa noite
Mal dormida e com a respiração travada
Espero na vida
Que sejam estes momentos breves
Como aqueles que antecedem a luz
Que enfim nasce do íntimo
E o dia poder voltar a amanhecer nosso

Amanhece
E o dia me encontra
De coração pequeno
Mais um dia
Não os verei
Nem ouvirei suas palavras escondidas
Não verei o brilho dos olhos
Não segurarei suas mãos pequeninas
Não contarei histórias
Mais um dia me travestirei em forte
E caminharei sobre brasas

Não tenho fome
Tenho uma adaga transpassada no peito
Desde a primeira hora
Sinto o estrondo
Do descarrilamento do trem da minha vida
Soltando faísca
Se contorcendo em ferragens
Porém ser ruídos
Foi sabotagem

Algo morreu em mim
Apesar de pensar que não
É indisfarçável
Passa inerte insensível
Amortecido tecido de amor
Fica aqui dentro
Com luzes apagadas
Não chama atenção
Sem voltar para a vida
Não deixa que eu sinta
O perfume cítrico
As flores perdem significado

Hóspede do acaso
Com rumo indefinido
Jogado para os cantos
Sem ouvir o canto da vida
Apenas acordes arrastados
Pelo arresto e lassidão
Deste lugar
Todos são filhos de cigana
Que vivem em tendas
Enquanto esperam
O que se sabe
Não vai chegar

Numa pele ainda nova
As pressões de imprecisas verdades
Se tornaram insuportáveis mentiras
Conheço o desespero
Que há no entremeio
O medo gelado da emboscada
A cada passo a destemperança
De não crer mais
Em possíveis soluções

Escrevendo muito
Rezando pouco
Troquei um pelo outro
Acordo no meio da noite
Pés gelados lá fora zero graus
Sensação de atropelado
Salvo por um triz
Com dor no peito
É muito grave
Coração partido não deixa ver
A extensão de tudo
Os fragmentos afiados
Deslizam cortantes no fio da história
Estou por um fio
À mercê das inseguranças
Que se entrecruzam no dano incalculável

Atenuo a dor da solidão
A pulsação ainda não voltou ao normal
Depois de mexer na ferida
O que sempre ocupa lugar
Onde houveram amores
Hoje há apenas um vaso sem flor
Olhos inchados sem fome ou tônus
Pareço assustado
Como se encontrado com um lobisomem
Quem sabe ele não era eu
Quem sabe não quis aquietar
Espantar a sensação de perigo eminente
Leio os sinais de perigo
No corte do dedo
No osso mal colado

Sou do tipo
Que acompanha tudo
Não me contento com pouco
Bom coração e afetuoso
É natural para mim
Achar que tudo vai dar certo
Não deu
Tive que rever tudo
Mas descobri
Que em meu peito
Bate ritmado o universo
E que minha vida
É mais ampla
E vai no fluxo
Da verdade da beleza
E do entendimento

Escrevo,
Mas com um tempo
Alguém vai ler essas linhas
Estará no futuro
bem no presente de quem lê
Mas entre nós
Haverá uma ponte
Por onde passará uma luz
Que me alimentará
Lá no meu passado, de agora
E me dará forças
E eu devolvei com mais força
Ao futuro
O que está por trás das palavras
Não está preso no tempo
Então comigo outros se encontrarão
E se descobrirão seres melhores

Precisarei trabalhar mais
E com esse suor me manterei
Enquanto suo frio
Na expectativa do que virá
No que vai dar
Esta nova vida
Então só uma coisa posso fazer
Escrever melhor
E com sorte
Encontrarei os meios
De alcançar outros olhos

Me reviro e reconstruo
Sem saber no que dará isso
Quanto mais há para revirar
Mas há para integrar
Não posso voltar para a vida que tinha antes
Ela não existe mais
Lá seria um fantasma
Rondando a mim mesmo
Estou na vida
Me sinto vivo
E só há uma direção
É seguir em frente


Novo dia
Banco o feliz
Neste momento de rupturas
Deixo a empresa e o empresário que fui
Entrei na empresa como homenagem a meu pai
Saio só
Porém por mim mesmo
Quando fazia limpeza nas gavetas
Revirei-as todas
E elas voltaram ao caos primordial
Como eu
Assim fez-se ordem
Apartir do inteiro
Recuso ser fragmento

As limitações se intensificam
A falta de amor intensifica o poeta
Cada emoção bate no vazio
No tamanho do entendimento
Mesmo depois que crescemos
Ainda somos crianças
Então vem a percepção gelada
Na qual tudo que você vê
Não serve para nada
E nada de bom virá dessa dor
Desse emoção de estar explodindo
Se nasce de novo


Apesar de bloqueado na espera
Algo transitório pode se passar
Quanto esforço
Quanto há para se compreender
Apesar das palavras
Relaxo os olhos
E os posiciono para observar
Olhar diz muito de quem olha
A forma de olhar
É a mesma forma de que se é olhado
Ver é ser visto, decifrado
Diz-se então com os olhos
O que me proponho escrever
Na lógica que a intuição sussurra


Nascemos pelo corpo
Somos formatados por ele
Da mesma forma que somos puxados para dentro
Para uma área onde pensamos sentimentos
Aprendo silenciosamente identificar
Essa tênues sensações
Enquanto volto para o meu campo
Como quem volta para o seu jardim
Sinto a flora dentro de mim
Nela sou quem realmente sou


Aperta-se o cerco
Sem entender os termos processuais
Caminho sobre ovos
Sempre para o acordo
Me sinto numa distante pátria
Chuvova e desconhecida
No silêncio ouço o ruído de carros
Uniformes, como numa auto-estrada
Como ruído de fundo
De minha própria alma
O que de certo modo
Não me deixa parado
Me põe nos ciclos vitais


Sinceramente, não quero respostas
Quero aprofundar e entender
Consolidar as mudanças de minha vida
Para não produzir uma doença fatal
Menos mal
Enquanto cuido disso algo cuida de mim
Não com sentimento difuso
Sinto na empatia de querer
Na incondicionalidade


Reaprendo a escrever
É o que mais faço
Escrevo sem pensar para que ou quem
Apenas escrevo
Posiciono os dedos no computador
Deixo a mente leve e me deixo levar
Internamente é preciso estar limpo
Então o que é preciso ser escrito
Vem e se reflete em mim
Sinto um ritmo uma pulsaçao
Desvio das rimas mas elas me alcançam
Mesmo quando me sinto mexido
As peças que saíram do lugar
Vibram em nova ordem
O que virá pela frente?
O que será preciso ser escrito


Continuo por distração
A tomar o caminho alheio ao meu
O que me devolve a uma outra vida
Enquanto passo emborrachado pela minha
E assim vou avolumando a série
De feitos e defeitos contraditórios
A facilidade em poder fazer muitas coisas
Me levou a ser quem não sou.
Ter podido escolher me levou
A esse estado de não mais ter como escolher.
Por isso porto comigo tantas coisas
São minhas ambigüidades
Me levam a crer no incrível
A me achar achado
Frente a frente com esse deserto
Que agora atravesso de lá para cá
E mais uma vez constato
É a rua da minha infância


Nem percebi
A fria que estava atrás
Daquele ar condicionado.
Sentir o chão
Me faz sentir mais leve
É bem melhor caminhar com os próprios pés
Encontrando o que brota
De minhas próprias águas
Ainda que com elas
Não possa dar de beber
Exceto a poucos


Quero diminuir o remanescente
Focar minha vida
Como se isso já não fosse tanto
Agir apenas no intransferível
O que equivale dizer
Não mais viver tantas vidas que não são minhas
As devolvo aqui como assumi
Como os sonhos que não são meus
Passo o ponto do que pensei que seria eu
Junto com as promessas de segunda mão
O peso acumulado
Como a resposta pronta
A cultura já pensada


Invariavelmente dói
Por onde sangra
O tiro atirado
Em todo soldado
Sempre pega em mim
Mesmo que do outro lado do mundo
Sai aqui
Onde toda miséria
Oxida o frescor
E tira a vontade
De se começar
O que somente cada um pode fazer
A nossa empreitada


Daqui parto para o mundo
Admito que em mim
Vive um corpo estranho
Uma lasca me alcançou
Uma ferpa fétida feriu-me a essência
Talvez tenha sido
No exato momento
Quando troquei a religião
Da natural para a instituída
Ou quando busquei a prosperidade
Num oceano de miséria
Quando achei que era amor
Mas era solidão

Voltei onde vi
Nascer a filha caçula
E aos outros crescerem
Pensei que emendava a vida
Transplantando-me neles
Mas não
Sou eu que acolho surpreso
O transplantado que vive em mim
Com as raízes arrancadas
E folhas murchas
Infinco-me à força
Nesse solo arenoso
Que esculpiu em mim quem sou
Que descamou minha pele fina
E produziu esse cara quem sou
Quase bom exceto nas provocações


Assim vejo
O retrato de nossas vidas
Quando posso escrever no verso
"Aqui atravessei"
Porém as promessas
Que não cumpri
Ficam repassadas
Para outros devedores
Meu interior ficou marcado
Na vida exteriorizada


Pode a paz nascer da tormenta ?
A riqueza da pobreza de si ?
Nesse jardim sem perfume
A esperança não veio
Na esquina da Pernambuco com a Maranhão
O cinema virou igreja
Hoje vazio
Todos partiram
Esvaziaram o colorido
Das fotografias em branco e preto
Onde foram tantos queridos
Como o pescador que morreu naquela casa
Não teve tempo nem de apagar o cigarro

Estamos todos cansados
Da repetição desta mesma cena
Vivemos tão pouco
Por tão pouco tempo
Que acabamos ficando
Eternas crianças
Influímos aqui
Deixamos nossas marcas ali
Mas quando atravessamos
E chegamos ao outro lado
Nos perpassa a promessa
A de viver uma vida
Onde como a flor
Nasceria no jardim


O que faz esta porta que abro
Ser tão diferente
É o que ela tem de tão igual
O que me faz entrar em contato
Com o mais profundo de mim
Abro a porta de casa
Como se fosse escancarar a alma
Respiro o ar guardado da outra semana
Ainda vejo brinquedos que sobraram jogados
O piano ficou aberto
O tapete fora do lugar
Me reconfiguro
Como quem tateia no escuro
Saio pela cidade

Concluo
Faço de contas
que não faço contas
Minha sorte está lançada
Como sementes ao vento
Onde cairão
E se darão fruto ?
Não sei
Só sei
Que somente as sementes
Não são diferentes
Das de toda humanidade


Constato
Não sou mais o que tenho
Não me movo mais assim
Mesmo tendo aprendo a ficar quieto
Adentro um doloroso conforto
De nunca estar em casa
Já faz tempo que nem sei
Onde estão as camisas e sapatos
Procuro em armários errados
Da mesma forma como não encontro
As partes minhas


Observo
Fecham-se as feridas
Por onde vaza a linfa
Que considerava
Fosse minha vida
Ainda pergunto se não poderia ter sido evitado
Tanto sofrimento
Com um amor maior ?
Com entendimento maior ?
O fato é que não foi.


Minhas mãos doem
O corpo está cansado
Da longa viagem
Por todo o dia de ontem
Na chegada o corpo estava cheio de energia
Ao se viajar horas a fio
Todo tempo concentrado
É que se conhece os próprios limites
E as nossas verdadeiras intenções
Somente assim se pode manter no eixo
De ser um cara bom
Que quer o bem para todos
E que se sente útil
Construindo no universo
E sendo contruido por ele

A figura de meu pai se mistura
Com a forma como vejo meu trabalho
Da mesma forma que espelha
A dificuldade de lidar com sua partida
Manter as coisas como estão
É não aceitar as perdas
É bom saber que
Não é preciso criar nada
Para confortar ou remediar
Me disponho então
A inteirar-me
E tomando meu rumo flutuar
No inteiro indivísivel
Da imensa vida
A que toco
Quando abro os braços


Por trinta anos
Gravitei meu pai
Por todos os aqueles anos
Cada dia
Pensei que eu fosse assim
Quando meu pai morreu
Continuei gravitando
Inercialmente
Mas como um planeta cansado
Saí de órbita
No esforço inútil
De ser alguém diferente
Como se um imã
Pudesse apontar o pólo oposto
Ou a um ácido
Tornar-se base
Tornei-me eu mesmo
Trago meu pai sempre dentro de mim


Retorno a casa que morei
Muitos anos, uma vida
As portas são as mesmas
Que me deram passagem quando parti
Algo nela não mudou
Enquanto eu não sou mais o mesmo
Os sofás amarelados
Colecionam novos rasgos
Uma casa que já vesti
Ar que respirei
Encontro conforto
Na última gaveta das lembranças
Encontro aqui um pedaço de mim
Que ficou esquecido
A esperança da criança
Que um dia seria adulto
E saberia as respostas
Mas para isso
Tive que sair por essas portas


Era parecido comigo
Tinha o que parecia ser eu
E duma hora para outra
Fomos separados
A idéia da pessoa
E me vi tendo que recomeçar do zero
Hoje sou do jeito que posso
Reclamo pouco
Agradeço mais do que peço
Tenho a vida com a minha cara
A cada momento aprendendo
Conheço e me faço conhecer
Vivo ligado aos filhos
Uma vida sem palpites
Vivo em estado de encontrado
Assim me sinto quando escrevo
Quando entro no meu cerne
Tinha antes algo ignorado
Só agora revelado
Eu


Apenas previ
O que viria hoje
Desfrutei cada minuto
Aprendi nas dificuldades
Mudei quando a vida mudou
Agora a vida desemboca nesta noite
De conclusões
Me pergunto
E se fosse outra a história ?
Se fosse outro o rumo tomado ?
Outras decisões
Se tivesse aquela profissão ou aquela companheira
Tudo se encerra nessa mesma noite
Em todas possibilidades estão aqui presentes
Ao mesmo tempo enquanto sigo
Descartando seguranças
E fazendo perguntas


Este será o teste
Serei amoroso e amigo
Saberei superar ?
Ser próximo sem exigências
Ou ficará escondida nas formas
algo machcado no conteúdo ?
Pelo menos tenho perguntas
Serei pós moderno ?
Serei a invensão da falta da falta ?
Estarei atento ao único que tenho
Não sabia que saberia saborear sabores


Às voltas com o sofrimento
Mergulhei nessa fronteira
Que só se chega pelas perdas
Encontrei o tipo de paz
Que somente chega
Quando se escreve
Paz e papel se encontram
Como se o conteúdo da dor
Somente pudesse ser conhecido pela escrita
O pensamento é forte demais para ele
O torra
Do meu vazio
Opto pela imersão nas águas.
Aquelas que encontro
Quando getilmente toco
O lápis no papel


Nasci de novo
Quando recebi em meus braços
Os filhos
Levei-os todos morar na fazenda
À sombra dos eucaliptos
Desses filhos veio a luz
O entendimento do ser
E quando estava tudo claro
Veio o blecaute
Que apagou tudo
Caí
Conheci a dureza do chão
Ao me reerguer me descobri
Destinado para uma outra vida
Mudei da espaçosa casa
Para esse apartamentinho mínimo
Com o charme de estar
Na mesma montanha de Guimarães Rosa
Aqui me defrontei com o rio
Onde quero alcançar
A terceira margem


Aprendi a ver
Ao mesmo tempo
Que os olhos cegos da minha tia Angelina
Passaram a enxergar o outro lado da vida
Acreditei no cosmos
E em seu encantamento
Achei sem graça o gosto oposto da terra
Passei pela adolescência pasteurizado
Estudei mais do que devia
E quando fui viver não sabia
Até encontrar as encostas rochosas de Ubatuba
E ouvir seu convite para o mar
Me reconstruí navegador.
Primeiro velejador depois piloto
Abracei meu pai
Me tornei seu empresário seu sócio e seu amigo
E de um dia para o outro
O vi partir
Não pude ir com ele
Me vi tendo que aprender a ver tudo de novo


Quebrei muitas vezes
Os vidros do portão
A delícia de brincar
Se instalou em mim
Conheci meu mundo de bicicleta
Entre livros e band aids.
Sempre tive atração pelo mar
São Paulo me empurrou para fora
No topo da minha rua
Tinha uma igreja com anjos sem rosto
Sonhava voar
Morar na fazenda
Sobrevivi à primeira década
Aos 11 fiz novos amigos
Que são até hoje
Fiquei magro e comprido
Escrevi a primeira poesia
Vi o mundo com outros olhos
Desta vez os meus


Morei primeiro
No sonhos de meus pais
Na barriga da minha mãe
Nasci de domingo
Não fui Domingos
Como o avô e bisavô
Sou fruto do pós guerra
Das esperanças recompostas
Em meio a fragmentos
Na casa onde nasci morreram meus avós
Morreram também minhas tias
Vivi no quintal
Tive um pessegueiro como primeiro amigo
Não os esperava amadurecer
Colhia-os ainda peludos e duros
Apreciava-os como obras de arte
Quebrei muitas vezes os vidros do portão


Quando tenho dez minutos
Escrevo
Escrevo para não explodir
Para espantar ou para dividir
Quem sabe...
Escrevo para entender
O que até agora não entendi
O que não pode ser contado
E agora se espicha em horas e dias
Estou no meu limiar
O que começa agora
É o que não pude ser


Saio pela cidade
Me deparo com a antiga casa
Onde bastava atravessava a rua
E estava na praça
O ar gelado intensifica o colorido da manhã
A estátua do soldado exposto
Expunha a cidade em guerra
Expunha seus adultos crianças
Prontos para jogarem fora suas vidas
No cheiro do ar
Ainda está o meu jeito de me sentir quem sou
Nos bancos sentam-se outros velhos
Mais parecidos comigo
Descubro o quanto deles sempre me desviei
Achando inutilmente que nunca seria como eles
Driblei igualmente os pequenos sofrimentos
Não sabia que assim
Irremediavelmente cairia nos grandes.


Não existem distâncias
Ou privações
Que enfraqueçam
A disposição
E o brilho nos olhos
A vitória sobre o medo
É sentir-se plantado
No canteiro de quem espera
Quem não aprendeu
Não permanece
Quem falhou em amar
Permanece igual


Casa arrumada
Enfeites piscam esperanças
As coisas tem o dom
De continuar sendo
Elas mesmas
Arrumar a casa
É devolver a elas esse dom
Junto delas
Aprendemos o que é continuidade
E só no fluxo de nós mesmos
É que crescemos
Nossa casa é nosso espelho
Acendo o lampiãozinhho
Nós dois iluminamos


A cada dia transformamos
Sofrimento em vontade
Dor em determinação
Dia comum em Natal
Puxa, quando lembro o que passou
Sei o quanto foi difíci
Mais ainda ao entender
Que de certa forma
Isso nunca mais vai terminar


À noite
Para cabermos neste pequenino espaço
Ficamos todos virados para o mesmo lado
E somente desviramos juntos
Em movimento sincronizado
Devagar e compassado
Como num bando
Comprovamos conhecer o segredo revelado
Apenas às sardinhas
E às gaivotas
Que nadam e voam em formação
E assim vamos seguindo
O que podemos mudar
Mudamos
O que não
Sonhamos


Não é meu fim de semana
É tarde
Estou triste
Na luz da vidraça uma certeza
Sinto muita falta deles
E do desconforto
De amanhecermos jogados
Uns sobre os outros
Braço de um nas costas do outro
Um pernão na minha barriga
No pescoço um fungar
De quem não vai acordar muito cedo
Sinto falta do cheiro de flor
De criança a sonhar


Já se foram seis meses
Contei 100 mil quilômetros
O equivalente a uma volta ao mundo
Apartamento aqui casa lá
Porém a sensação é sempre de vazio
Nunca sei onde esta aquela camisa
Nem a xadreza nem a lisa
O tal sapato ou aquela bermuda
Nem aonde estou ao acordar
Demoro para decodificar a luz
Depois os sons
De passarinhos estou sozinho
Ou um ronquinho
Quando estou com eles


É chegado um novo tempo
Teremos essas semanas a frente
Isso de tudo correr bem
E ninguém fique de recuperação
Assim poderemos voltar
E sentir nosso teto e nosso chão
Nossa identidade
Nossa casa
Como demorou
Quantas noites em claro
Quantos dias escuros
Quantas semanas truncadas
Quantas audiências
Quantos anjos da guarda foram precisos
Para não ocorrer algo irreversível
Como se irreversível já não fosse a situação
Quanto pranto premido
Arrochado exprimido
Quanto vai e vem
Não sei nem mais
Se vou ou se venho


O pinheirinho na sala
Mesmo de plástico
É um sinal de esperança
Como árvore de Natal
Nesse calendário sem Dezembro
Evoca em mim as forças
Para superar a dor
Desses dias confusos
E posso ao menos respirar
Sonhando que em breve
Estaremos de volta à nossas vidas
Quando poderemos ter
As delicias de Natal


Semanas se emendando
Reuniões com advogadas e psicólogas
Tornaram-se infrutíferas
Parece que andamos para trás
O sofrimento vai se curtindo
Do estranho me acostumo
Juro que não quero
Não sei reverter essa situação
Parece descontrolada
Talvez esteja


Volto para casa
Não consigo tocar em nada
Ponho o computador no colo
E arrisco algumas palavras
Das janelas de MInas
Vêem-se as montanhas
Como Himalaias distantes
São como a vida que não queria viver aqui
Apontam os montes nevados
Teria eu o mesmo destino das cordilheiras ?
Cedo e agraço essa etapa da vida


Manhã maravilhosa manhã
Depois de uma noite ainda que pequena
Cinco dias em boa companhia.
Sentindo-me como um vagão
No meio da longa composição da vida
É bom ser passageiro permanente
Hora de levá-los para os afazeres
E depois à escola
Segundas sempre são tristes
Ou os devolvo ou estou sem eles
Tenho o consolo do recreio
Ainda bem


Choveu domingo
Deitamos no sofá sem fazer nada
Estranhamos as mesmas coisas
Rimos choramos reclamamos
Sonhamos o mesmo sonho
Sonhamos acordados
O sonho curtido pela dor
O sonho a que temos direto
E juro merecemos
O cansaço venceu
E dormimos esticados a sala
Nem tiramos os sapatos
Esperando que o dia
Parou a chuva


Noite curta
A melodia da respiração deles
É sonoridade com o despertador tiquetaquento
Não tarda a tocar
Daí é: pão padaria iogurte e aulas particulares
Às 9:00 já estou saindo pela terceira vez
Às 11:30 chegamos para preparar o almoço
Às 12:50 saimos para escola
Espero até as 17:35 quando toca o sinal
Então começam nossas pequenas férias
O nosso fim de semana em uma noite
O tempo especial só para nós
Até o aniversário da amiguinha
Fica disfarçado de passeio
Nenhum minuto desperdiçado
Mais adiante inevitável cochilo
O dia passou rápido


Não falam muito
Só se for coisa grave
Aos poucos vão se soltando
Dou banho em cada um deles
Com seu shampoo e creme preferidos
Seco-os com toalhas com nome bordado
Pijama e sala
Assistem filmes e histórias
Que não se cansam de ouvir
Vão com sono para cama
Onde despertam outra vez
E mais aconchegados
Comunicam o que sentem
Disputam as encostas do pai
E com as pálpebras pesadas
Escutam histórias engraçadas
Até a última
Quando fecham os olhos e abrem a alma
Numa espécie de oração
Que é o seu silêncio


Somos conectados
Muito ligados desde o dia que nasceram
São as minhas maiores alegrias
Aqui nos vemos todos os dias
Mesmo nos da guarda da mãe
Os sinto a todo instante.
Visito-os no recreio da escola
Com pão de queijo e suco de frutas
E na quinta que é meu dia os apanho
E trago para esse minúsculo espaço
Eles chegam pesarosos, lentos e desfocados
Cansados jogam as malas
Escolhem muitos devedês
Sofrem uma primeira macarronada
Das muitas que se sucederão
O apartamento ainda arrumado
Os recebe em colchonetes na sala
Almofadas coloridas e travesseirinhos


A cada quarta feira mudança de estado
De sólido a líquido lacrimoso
De líquido a efervescente gasoso
Ora paulista ora mineiro
Em Minas sou apenas pai
Caso já não fosse o bastante
Pai aqui e ali pai para levar e buscar.
E quando surge um tempinho livre
Corro para escrever


O apartamentinho transborda histórias
Intensos momentos com os filhos
E de uma hora para outra a mais fria solidão
Enquanto não resolvemos a vida
Atada a processos e outros papéis
A tomada da sala
Única em benjamins
Alimenta todos aparelhos elétricos e o celular
Um ar pesado
Não era para ser assim
O corpo rejeita ao que se sujeita o ser
O quartinho de empregada com piano elétrico
É o mais difícil de se manter arrumado
É tão apertado
Não cabe mais nada
Foi projetado para uma empregada anã
Ali é mais forte a solidão
Dali ecoam melodias
Que não para de tocar
Rondó, maxixe e pantera cor de rosa


À noite recebemos visitas enquanto dormimos
Elas surgem das fossas e outros buracos
Se alimentam de sobras
Não fazem ruídos
Se utilizam de uma greta
Que existe logo atrás do fogão
Charmosamente desfilam
Em brilhantes túnicas pretas
Apropriadas para ocasião
Não usam roupas baratas



As roupas brancas se amontoam
Roupas de malha e algodão
Dobram-se espontaneamente
O banheiro está bastante arrumado
Nove escovas de dentes alinhadas
Perfilam na beira da pia
Se observam no espelho
Entre as pastas recém tampadas
O alicatinho de unha e pinça
Prontos para mais cutucadas
Cesto de papel transbordante
Enfim esvaziado
Toalhas limpas
Nenhuma roupa no chão
O apartamentinho parece até maior


O senso de limpeza existe
Se o olhar não percorrer os detalhes
No chão da sala cadeiras de armar
E o tapetinho de números encaixado
Sofá de volta ao seu lugar
A mesa foi a única que não se moveu
Seu tampo de vidro limpinho
Ao seu redor se podem ver migalhas
Vestígios de cafés da manhã passados
E um pouco mais afastado outros fragmentos
De jantas servidas em canecas
Ao longo dos inúmeros devedês
Nos quartos há uma quase ordem
Roupas limpas amontoadas
Formam um conjunto
Como se nós todos fossemos um
Meias separadas umas das outras
Se buscam a cada revirada


Fogão limpo menos nas grelhas
O forno não
Nele se amontoam histórias e sabores
De inquilinos anteriores
É um museu
Memórias vivem nas gorduras
Relutam ir embora pelo ralo
Ficam grudadas
Querem ser algo diferente
Ficam aprisionadas na inércia
Como memórias do que eram
E nunca mais voltarão a ser
Escolhem cantinhos
Vivem por adesão
Não se sabem como são
Dissolvem-se em açucares
Ou por esfregaço
De água e sabão


Casa limpa e arrumada
Pratos úmidos se empilham
Em prateleiras lisas de fórmica
Estas se umedecem também
E absorvem lentamente a umidade
Por descoladas passagens
Talheres enfim de volta ao secador de pratos
Desmemoriados de sabores
Algo ainda espumantes em Ipê
Esparramados e revoltos
São obras de arte na Bienal da cozinha
Panelas gamelas vidro de medidas
Alumínio teflon e a leiteirinha
Voltam ao escuro do armário
Novos odores juntam-se
Aos do segredos de pia


Assobia o guarda noturno
Dá vontade de responder,
Mas como ?
Uma apitada de volta ?
Ou piscando a luz ?
Ele se sentirá desacatado
A única resposta válida
É com o silêncio
De tal forma que sinalize
Que a noite é de paz
Assobiam também as janelas em frestas
O vento varre a cidade corre livre
É uma noite sonoramente orquestrada
Regida por esse apito


Um novo dia chega
Amanhece lentamente
O sol se recusa a aparecer
Por trás da grossa camada de edredom
A fria atmosfera envolve também a alma
Parece feriado
O céu é cinza
Como cinzas há por toda parte
Na janela luzinhas coloridas
Ficam apagadas e esperam o dia de se acender.
Pulam pela janela
Adornam a árvore
E voltam para a outra janela
Suspensas nos galhos
Saltam os dias
Enquanto a luz não chega


Depois de tanto fast food
Um almoço de verdade
Com cheiro de comida
Arroz e feijão como um exilado
Batatas e ovo e para acompanha refrigerante
Delicias de se comer num apartamento limpo
Sala varrida
Blindex transparente outra vez
Mala de roupas sujas finalmente vazia
As coisas acham seus lugares


Na garagem o velho Galaxie
Ou melhor dizendo em duas delas
Portão elétrico porta de vidro
E então quatro lances de escadas
Onde os vizinhos se encontram
Ou em subidas ou em descidas
Evitam comentar assuntos longos
Como o volume do rádio
Da empregada do terceiro andar
Às vezes compro pizza
Coitadinho do entregador
Quanta energia há neste lugar
Parece adequado para atenuar a solidão
As paredes se invizibilizam
Quando vejo o meu problema
Deixam ver que a diante que algo novo vem
Às vezes um pequeno raio de sol
Consegue espantar as sombras não é mesmo ?


Árvores muito velhas
Foram plantadas dos dois lados da rua
Separadas há muito
Planejam com o tempo
Unirem-se em copas
Matar a saudade
Da floresta ancestral
Onde viviam indivisíveis.
Isto faz desta rua tão especial
Este quarteirão tão antigo
Roma Romão.
Surubim na brasa
Farmácia e sacolão.
As árvores ultrapassam o horizonte da janela
Por onde gostariam de entrar.


Um marceneiro roe madeira
De quando em quando
Espanta o silêncio vindo pelo canto dos pássaros.
O vento bate os pequenos galhos nos vidros
São curiosos como sino
Esse não tarda lembrar
Como era antigamente.
Por aqui há muitas escadas
Compras só leves
Quando se mora no segundo andar
Sem elevador garrafas nem pensar
Creme de leite só se for de 200 ml.
Latinha só de molho de tomate
Água em pet
Morango em caixinha de isopor
Ou na proteção do mamão papaia
É para espantar o tédio
O luxo de uma única exceção
Um coco verde gelado.


Escrevo enquanto espero esse longo vôo
que me leva de volta
No bar da ante-sala do salão de embarque
Escrevo por crer em mais nada
Por ser o último sagrado,
Escrevo
Como sendo a última oração que posso
Além das minhas forças
Escrevo como quem se entrega a amante
Como quem não vê nada adiante
A não ser o cuidado por cada letra
Contratada em papel
Escrevo como epitáfio em lápides calcáreas
Escrevo em letra de bilhete suicida
Escrevo como quem sangra lentamente
Escrevo como última opção
Pensando bem
Unica


É sempre mais longa a noite da véspera
As últimas horas que separam nossos abraços
São como cem anos sacados da eternidade
São apenas um minuto sem respiração
Apenas um tranco a mais
Poderia ter sido eterno
Poderia ter virado gente
Poderia ter sido Gabriel
Poderia ter-se consumado
Poderia ter sido lindo
Pelo menos lido


Volto para casa como quem não partiu
Como quem não conheceu o outro lado
O outro hemisfério
O outro lado do vazio
A vida brotada da solidão
Volto como um soldado do front
Ferido e ostentando cicatrizes
Volto da dor do mundo
Volto das voltas das longas noites
Volto sozinho mais pobre e mais velho
Volto com uma espada cega e opaca
Com um buraco na roupa como talismã
Como sinto falta de ter casa


Não foram bastantes os presentes
Nem os carinhos e as flores
Como as dores e o silêncio
Compartilhadas não foram as palavras
Não foi o prejuízo dos filhos o suficiente
Não fez entender
Não foram os mantos ou as pedras
Não foram horas e dias não foram às rugas
Não foi o cansaço o bastante
Foram só alguns instantes nesses anos ?
Foram só alguns abraços e conversas ?
Um hiato foram só tratativas
Que ficaram sem compromisso
Foram outras vidas 4000 dias e outros papeis
Que viraram carbono